Autor: João Feijó
Desde o início dos ataques no Norte de Cabo Delgado, diversas hipóteses explicativas do conflito salientaram a existência de tensões etnolinguísticas, particularmente entre povos muçulmanos da costa (mwanis e makuas) e a população makonde. Contudo, os dados dos Censos de 2017 demonstram que os distritos costeiros da província, maioritariamente islâmicos, não apresentam diferenças muito significativas em termos de acesso a bem-estar, comparativamente com o planalto makonde, maioritariamente cristão. Os resultados revelam que a pobreza em Cabo Delgado é generalizada e transversal a todos os grupos etnolinguísticos.
Os indicadores que registam um maior índice de desigualdade relacionam-se com o acesso a recursos do Estado, em particular à pensão de antigo combatente. Os dados permitem identificar uma forte concentração dos beneficiários nos distritos de Mueda e de Muidumbe, mas também de Nangade, Mocímboa da Praia e Macomia, precisamente nas áreas de maior presença makonde. As vozes no terreno são praticamente consensuais na associação do subsídio de antigo combatente a este grupo etnolinguístico. Este fenómeno contribuiu para a representação do Estado, por parte de populações mwanis e macuas, como um campo partidarizado e capturado por grupos etnolinguísticos específicos (makondes em aliança com elementos do Sul).
A introdução da pensão de antigo combatente reforçou tensões históricas entre grupos etnolinguísticos, sendo que a exclusão generalizada de mwanis (e de makuas), quer da história da libertação nacional, quer do acesso aos recursos do Estado, constitui um obstáculo a ultrapassar na construção da unidade nacional. O sentimento de exclusão social daqui resultante foi agravado pela eleição de um Presidente da República makonde, processo que coincidiu com uma maior afirmação das forças do Estado no controlo dos recursos naturais, localmente interpretado como ao serviço de poderosos indivíduos makondes.
A corrupção e o nepotismo que se desenvolvem em torno do Estado, a consequente fragilidade dos serviços públicos, o sentimento de fragilidade democrática e de ausência de liberdade de expressão, ou as dificuldades de acesso à justiça, aumentam o sentimento de marginalização dos grupos mais pobres, podendo torná-los vulneráveis a aderir a movimentos com discursos fortemente identitários, populistas e messiânicos.
De qualquer das formas, relativiza-se qualquer tentativa de simplificação do conflito armado a questões étnicas, sobretudo se se atender que: 1) jovens insurgentes se revoltam no seio de próprios grupos islâmicos; 2) predominam fenómenos de exclusão social entre a maioria da população makonde, marcada por fortes níveis de diferenciação social e de acesso aos recursos do Estado; e 3) assiste-se a um crescente número de jovens makondes nas fileiras dos grupos rebeldes.
Data: Junho de 2020